Saio de casa a correr. Não consigo ficar aqui nem mais um segundo! Tenho a cabeça demasiado cheia para conseguir introduzir mais elementos. Se mais uma pequena brisa conseguir penetrar no meu cérebro, eu temo que vou explodir de vez!
Rodo a chave e começo a percorrer a estrada como se estivesse a fugir. Por momentos sinto-me uma criança a fugir de casa, com uma mochila às costas e uma tablete de chocolate nas mãos. E é assim mesmo que me sinto. Como se me tivessem negado o brinquedo dos meus sonhos e eu tivesse esgotado todos os argumentos possíveis face a um irredutível “Não”! Incapaz de transpor esta barreira, tomo a atitude de fuga, sair dali o mais rápido possível, agravada pela possibilidade crescente de explodir a qualquer instante.
Não explodi. Em vez disso, um interminável tambor alojou-se na minha cabeça, mas que o Chiado minimizou ao disponibilizar-me quase prontamente um lugar para estacionar. Por vezes penso que esta cidade já me conhece. As suas estreitas ruas pressentem a minha chegada e acomodam-me nos seus braços laterais, nos quais deposito o meu cavalo azul, enquanto mergulho nos deliciosos prazeres urbanos de Lx.
Hoje tinha os «Sorrisos de Bergman» à minha espera. O relógio não parava e o telemóvel insistia em tocar... “Estou mesmo a chegar!”, repeti pelo menos três vezes. Atravessei o Chiado a correr como se o movimento rotativo do planeta dependesse da velocidade dos meus pés. Um mendigo pós-moderno atravessa a rua e exige dinheiro para comer. Recuso tal demanda, mas subitamente lembro-me da tablete de chocolate e sou impelida a desfazer-me desse prazer, por simples noção de dever. A criança é vencida pelo dever moral. Continuo a interminável travessia do Chiado, a rua do Carmo nunca pareceu tão comprida, nem a praça do Rossio tão longe. Homens estranhos dizem coisas que não entendo e provavelmente «será melhor ficarem imperceptíveis», penso, numa espécie de diálogo absurdo sem resposta coerente possível.
Chego finalmente e todos estão à minha espera. Um avassalador sentimento de vergonha preenche-me por momentos, mas estranhamente dissipa-se rapidamente. Uma vez mais sinto que a cidade me acolhe de braços abertos, num movimento aleatório há muito planeado, e por isso deixo de me sentir incomodada com a minha falha. Antes uma sensação de plenitude ofegante invade o meu espírito, enquanto me sento à frente dos panos brancos que me conduzem a outra vida, a minha talvez.
Vejo expressões que já foram minhas. Ouço palavras que ainda ontem disse. Chegam até mim emoções que há uns dias apenas senti. Tudo me fascina de uma forma profundamente estranha mas previsível: esta podia ser uma história sobre mim, ou melhor, uma das muitas novelas de que a minha absurda passagem pelo amor já foi palco. Ainda ontem eu vivi esta cena e hoje já alguém a escreveu, encenou e produziu!
Como tudo é rápido e previsível. Há quase meio século que Ingmar Bergman previu o que eu ia sentir hoje. Que génio ele é e que pouco original é o que eu sinto! Tudo não é mais do que uma previsível repetição daquilo que tentamos ser. Todos os nossos esforços são incapazes de produzir qualquer réstia de originalidade para os manuais sobre o amor: como encontrar algo raro e não o confundir com um embuste, quando a revelação da sua inexistência nos foi exibida há já muito tempo sem refutação convincente?
Tudo o que dizemos sentir torna-se rapidamente inadequado ao momento em que o afirmamos. Apenas o instante antes das palavras preencherem o silêncio dos corpos, em que o desejo de sentir nos impele ao toque, apenas esse instante é construído com verdade. Todo o resto é já reconstituído e reformulado por padrões estipulados não sei muito bem por quem.
Bergman ao sorrir recria o que eu ainda ontem senti...e sinto. Já nem sei que tempo usar. E se tudo o que dizemos se torna falso pela passagem do instante entre o sentir e a produção de palavras, o tempo do verbo torna-se irrelevante pois, no fim, tudo será igualmente uma infundada mentira no seio de uma receptáculo repleto de cinzas do que um dia sonhámos ser.
* sónia