Messages in a Bottle

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segunda-feira, maio 16, 2005

A noite desce...

A noite desce, doce e suave, sobre o que resta dos esquissos que delineámos no silêncio dos corpos, quando sopravas desejos e oferecias beijos e eu tocava o teu corpo com flores encarnadas.

A noite desce sobre mim, como um cobertor que me abraça no escuro e no frio e eu sinto o sabor do mel com aromas quentes e acordo sozinha contigo na cama ainda desfeita.

A noite desce e um palhacinho doce faz truques de magia e eu sorrio e sonho e depois acordo e depois o ilusionismo despe-se da inocente magia da noite que desenha sonhos dispersos no acaso do tempo.

A noite desce e chovem pétalas coloridas do céu estrelado e o toque doce e suave da noite beija a pele envelhecida das feras adormecidas no frio escuro do Inverno.

A noite desce e uma princesa apaga pequenas velas suspensas no céu e uma menina termina um livro de formas geométricas e alguém corre pelas esquinas e alguém foge para as esquinas e um palhacinho faz truques de magia na noite e as pétalas voam como borboletas.

A noite desce e eu desço com a noite pela noite até à margem do rio.

domingo, maio 15, 2005

doce janela

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

ventos

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Eugénio de Andrade

fazes-me falta

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

choveu...outra vez

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


José Gomes Ferreira

quarta-feira, maio 11, 2005

lembras-te?

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Ary dos Santos

domingo, maio 08, 2005

noiva em fuga

Querem casar-me à força. Piqueniques à beira da piscina, jantares à luz das velas, concertos de jazz ao fim da tarde, exposições ocasionais e amigos com indumentárias de padre. Tudo parece estar a ser a maquinado por mentes expectantes na busca de um fraque adequado às minhas dimensões.

O Verão está prestes a chegar, o sol é cada vez mais intenso e a minha pele é extremamente sensível a ambientes de extremo calor. Mal pressinto a chegada de um potencial fraque, as erupções começam a surgir na minha pele como fungos num pântano e escondo-me por debaixo de uma manta de retalhos. E é aí que imagino como seria bom estar com o meu pai, a comer caracóis e a beber imperiais, enquanto um filme do James Bond faz o Sean Connery parecer o homem ideal e esqueço quaisquer aspirações de um futuro pretendente.

Querem casar-me à força. Não posso ser só eu; tenho que ser eu e o futuro fraque. As alergias surgem cada vez com mais frequência e a minha pele está cansada de tratamentos cosméticos. Jantares com amigos é sinónimo de novo fraque em potência e, à imensa enumeração de lugares-comuns e interesses orquestrados, um novo embate é evitado com uma consulta de dermatologia.

Querem casar-me à força. Mas a minha grinalda está guardada num baú de madeira maciça e o Verão é propício a incêndios.

quinta-feira, maio 05, 2005

Coisas Soltas

Além daquilo que faz chorar os poetas, que faz com
que os soldados se lancem para a frente e percam
a vida à luz do sol: que será, Bill?
* Carl Sandburg *


Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.
* José Gomes Ferreira *


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
* Mário Cesariny *


Acordo de noite subitamente.
E o meu relógio ocupa a noite toda
(...)
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
* Fernando Pessoa *

terça-feira, maio 03, 2005

chá verde

uma gota de chá verde ainda quente cai sobre o pé descalço. não estremeço, como se a pele absorvesse, em instantes, todo o calor de uma vida, toda a cumplicidade de alguém que conheces, todas as histórias que escreveste e queimaste. em segundos apenas e apenas com uma gota de chá verde, sentes a presença de alguém que partiu numa caravela.

passaram anos e ainda não sei porquê.

quando regressei a lisboa, ao fim de meses no oriente, uma velhota com quem ía no eléctrico disse-me, num tom sereno e misterioso de quem sabe mais, com a expressividade de quem tem um baú de histórias para soltar, "um dia vais perceber. quando menos esperares, tudo será simples e fácil e tudo te será revelado, como um tesouro escondido guardado a sete-chaves que de repente encontra uma bússola de vento...e tudo vai ter ao seu lugar". encontar o tempo certo para saber e o tempo certo acontece quando a vontade grita lá longe. mas não há leis agora, nunca houve; só talvez a norma de quem diz, faz, sente sem amarras e sem vertigens, mais cedo ou mais tarde.

disseste que voltarias a lisboa. por acaso e sempre por acaso, encontro cartas perdidas dentro de livros que não cheguei a ler, cartas que não cheguei a enviar, coisas que não chegaste a ler, coisas como "tenho medo, mas quero. dá-me um beijo".

disseste que voltarias a lisboa e eu acreditei. enquanto espero pela lua e pelo sol, termino o chá verde e vou dormir. e quando não souberes mais, conta uma história, escreve um poema e oferece um beijo.

domingo, maio 01, 2005

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