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quinta-feira, outubro 21, 2004

Recobro

"Faltavam dois minutos para as oito quando me puseram as agulhas; eram duas – grandes e finas. Direito às veias para o líquido se misturar com o sangue e num segundo perder toda a consciência. Não tive tempo para pensar na bola do Nivea – tão grande, nem de reaver o sabor do pão com manteiga. De te enganar com os cromos e acabar. O máximo que consegui foi prender o olhar nas lâmpadas azuis; Talvez nem tenham essa cor , mas é do que me lembro. Disso e do cheiro a éter.

O corpo displicente, deitado. E saber nesse instante tão longo que não há amor, antes ou depois do recobro, apenas uns segundos de torpor; Das veias azuis como as lâmpadas e o barulho das rodas pelo corredor.

O corpo é muito mais denso nos dias de calor. Nas palavras. E tão pouco misturado com o líquido frio; Suportável, mas frio. O que é que acontece quando eles têm as máscaras postas, as luvas apertadas nos pulsos e nos cotovelos; Os murmúrios. As máquinas que nos mantêm. Os frascos, os tubos que filtram os bocados abraçados ao álcool.

E mesmo que esperes, mesmo que o medo te faça pensar que o amor salva, Desintegro-me nos instrumentos de metal. Gelados. Repara: o corpo desaparece aos poucos. Se tivesse um segundo, se os lábios não estivessem tão secos e o sabor a cobre não se enrolasse na garganta. Haveria um tempo e talvez fosse crente ao ponto de acreditar.

Implacável o tempo. Tantas cores em volta de um lençol branco. As paredes estão pintadas de verde-água, a mesma cor das batas ligeiramente largas, ligeiramente falsas. Em cima da mesa de cabeceira, um bloco de notas em branco porque ainda não sabes que me terei esquecido de todas as palavras e já não há tempo; Estarei lá dentro três ou quatro horas inerte. Não tenho medo: o corpo – quero dizer, o amor deu-se bem com os complexos químicos – dezenas e dezenas de miligramas. A garganta desfeita, áspera. Mergulha – em breve esquecerei tudo e quando acordar saberei o silêncio de cor.

Descrevi-te os sintomas com o detalhe maçador das cidades distantes. Agora sossega. Os cães estão exaustos de cansaço e de frio. Sinto-me bem aqui, na sala asséptica. Está tudo limpo, organizado. O coração perfeito – bastante mais calmo."

(Helena Mascarenhas)


* sónia