Sombras chinesas, vidas emprestadas, fotografias forçadas, o circo de sempre, a casa amarela do costume, sons estrangeiros, uma imensa repetição do tempo perdido na rotunda do Sudoeste.
Encontros constantes com um postal do passado. “Ser sincero contradizendo-me a cada minuto”, sussurra-me Álvaro de Campos com A Passagem das Horas, enquanto o bolo de chocolate substitui o brigadeiro que ainda não comi este ano.
Correntes no rio, vagas no mar, um encontro atribulado de sentidos contrários, jogos inúteis, adultos fingem ser crianças, sotaques do norte, crianças felizes com o instante da vida em que a areia ganha formas fantásticas, o farol que se apagou com o cansaço do tempo no deserto da noite.
Uma viola constrói sons dispersos na areia, um cão perdido com donos vadios enraivece as ondas, um papagaio voa aos trambolhões pelas nuvens vazias, um barco sobe e desce o rio sem planos futuros, uma mota desafia inutilmente o rumo das ondas, uma criança rebola na areia e eu desejo ser pequena outra vez, um barco à vela caminha pelo rio sem vento mas uma leve brisa empurra-o até ao mar. E os acordes do mar triunfam sobre tudo isto.
Os meus olhos estão diferentes apesar da praia ser a mesma todos os anos. As rochas cobrem-se e despem-se e sobem ao palco de areia todos os anos com formas idênticas. A mesma fotografia regressa todos os anos à mesma hora – como eu amo essa imagem desta praia com reflexos de mim. Uma janela de madeira virada para o horizonte das viagens prometidas aquece o súbito frio interior das memórias perdidas pela passagem dos meses. Os pescadores preparam-se para desafiar as vagas da noite. A praia despe-se. O sol preguiçoso começa a bocejar e as sombras da lua colam-se na areia ainda quente. Tudo agora é já ontem.
* sónia